Mostrando postagens com marcador Crônicas e Escritos. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Crônicas e Escritos. Mostrar todas as postagens

domingo, 27 de janeiro de 2013

A caverna IV




Os ônibus passavam sem que tivesse vontade de parar em nenhum dos pontos para tomar um e sair da chuva que engrossara e tornara-se torrencial. A verdade é que a tormenta também escondia suas lágrimas, pois pensar naquilo lhe revolvia o intimo e lhe deixava sensível. Livre, era assim que se sentia ao percorrer a longa avenida sem se preocupar, pois sua mente estava em outro lugar, com outras preocupações. Preocupações perdidas em outra existência...
O que aquele homem realmente sentia por ela? Apesar de, muito tempo depois, tentar transformar esse sentimento numa mentira, ela, de verdade, não conseguia imaginar que fosse isso. Podia ser inocente, mas até mesmo olhando a situação de longe, muito tempo depois, não sentiu que foi de todo ingênua em acreditar que o que ele sentia por ela não fosse verdadeiro. Era. Só não conseguia definir o grau disto, ou o porquê de certas coisas. E a complexidade a afastou de definir uma explicação ou julgamento, como outros queriam. Dentro dela, sempre houve esse vácuo do motivo, da razão daquele amor ter se distorcido e se transformado em algo que foi taxado como mau, pervertido, relegado ao silencio constrangido da família.
Não conseguia pensar naquilo de uma maneira linear como até aquele momento. Ao chegar nesta parte da história, ela se picotava em recortes que iam e vinham e respirou fundo, aspirando agua fria que caia por seu nariz para tentar colocar as coisas no lugar. Sua visão se turvava da chuva ou de lagrimas?
Ela sabia de uma coisa que talvez ninguém mais soubesse ou se preocupasse em entender: não foi por pura maldade que, com o tempo, ele transformou sua afeição à ela em algo que ela não compreendia com sua pouca idade. Se ela soubesse da celebre e polemica personagem de Nobokov naquela época, pensaria se ele não a transformou na sua própria Lolita? Talvez...mas aquela da historia do russo não nutria nada de especial por seu Humbert e vivia com seu sequestrador pelo fato de ela mesma sentir-se perdida e não ter para onde ir. Se não ficasse com ele, se não se aproveitasse da atenção que ele lhe atribuía, com quem mais estaria? Mesmo que para isso, tivesse que viver experiências que nada tinham a ver com sua condição precoce de pré-adolescente.
A situação era parecida? Será...? Ao contrário de Lolita, ela nutria sim um forte amor por aquele homem que ali estava lhe dando toda a atenção que sempre quisera ter Mas por medo de perdê-lo, submeteu-se as suas vontades estranhas. Tinha um fundo da ficção, mas continuava não o associando ao pervertido Humbert-Humbert. Só não sabia se fazia isso por não saber ao certo a versão dele nesta história ou se porque sentia que seus sentimentos se diferenciavam do estuprador pedófilo numa escala que só ela conseguia entender.
Mas o fato era: ela descobriu o sexo muito antes do que qualquer pessoa que conhecia poderia conceber. Não era à toa que sentia-se tão predisposta a volúpia nos dias de hoje: as raízes eram essas. Precoces e conturbadas, estranhas e até mesmo imorais.
O que ela pensava sobre isso? Ela preferiu andar um pouco, silenciando até seus pensamentos, deixando apenas o olhar vagar pelas poças d’agua refletindo as luzes dos carros e dos postes. Parou finalmente num dos pontos, lembrando que costumava tomar o ônibus ali de volta para a rodoviária da cidade quando saia do estagio que fazia naquele bairro. Ótimo, já deixara outro pensamento entrar em sua mente, dando-lhe um descanso daquela historia perturbadora.
Só debaixo da proteção do ponto começou a sentir frio e tremer. Olhando a chuva que continuava a cair e não dava trégua, não teve coragem para tornar a encara-la e talvez fosse ai o fim daquele passeio reflexivo.  Estava na hora de voltar para casa e começou a fitar o horizonte desejando que viesse logo uma condução que lhe tirasse do frio da noite.
Então um carro parou no meio fio e demorou alguns segundos para entender que era com ela. Sentiu um calafrio e suas defesas naturais sempre em alerta contra estranhos – não, contra homens, mesmo que quem saísse daquele carro não fosse um, sua associação ao perigo era imediata – fizeram dar um passo para trás e ficar de sobreaviso. Quando o vidro desceu, experimentou um segundo de engulho, porque se fosse algum homem querendo alguma besteira...
— Menina, você esta encharcada! O que ta fazendo aqui?
Um suspiro de alivio imediatamente percorreu seu corpo tremulo de frio e apreensão. Eram apenas colegas do trabalho que por lá passavam. Atribuíram sua palidez ao frio e pediram que entrasse, coisa que ela se recusou a principio, argumentando que molharia todo o estofamento, mas não teve opção e logo estava no calor característico de um carro fechado na chuva. Agradeceu mentalmente pelo conforto que tanto precisava....
Houve alguns minutos de conversa trivial e ela não deu muitas explicações do motivo de estar andando sozinha na chuva além daquelas que serviriam para fazê-los se desinteressarem de continuarem questionando. Tudo em você é esquivo, lembrou da amiga que deixara em casa lhe dizendo e sorriu consigo mesma.
Depois de um tempo caiu em seu silêncio habitual olhando aquele casal que conduzia o veiculo, no modo como brincavam, se entendiam e pareciam normais: teriam tido experiências que lhe distorceram a personalidade quando pequenos? Não parecia...e quando percebeu, a fresta daquela porta para seu passado novamente se abriu e ela, olhando a paisagem passar velozmente pelo vidro embaçado, se perdeu novamente numa época ha muito longínqua.

***

Se você esta começando a achar isso interessante, comente o que pensou.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

A caverna III


Ninguém consulta as crianças quando alguma coisa de diferente vai acontecer na casa. Os adultos, aqueles gigantes imponentes sabem de tudo e não é necessário delongas ou explicações com aqueles que ficam lá embaixo observando os seus movimentos e falas complexas. Mas só o que ela conseguia imaginar, ao vê-lo parado na sala conversando com os pais quando chegou em casa era: quem era aquele estranho e o que ele estava fazendo ali? Por alguns minutos sentiu-se incomodada com a presença nova e o modo como ninguém lhe dizia o que estava acontecendo. Só mais tarde soube que ele viera para ficar por algum tempo. Ela não se lembra de muito mais além disso, mas, como uma fotografia, se fixou em sua mente esse primeiro impacto da estranheza e do leve medo do desconhecido, ao vê-lo no espaço que ela considerava familiar e seguro. Porém, ela veria que logo ele se incorporaria nesta sensação de intimidade doméstica e faria parte dela mais do que a própria família.

Ela lembra porque isso aconteceu. Seu pai sempre venerara o irmão, único que tinha. Naquele tempo ela achava que deveria se esforçar para ter a atenção de ambos. Uma vez tendo a atenção do irmão, ela teria do pai, ou uma vez com o pai, ela poderia participar do que ele fazia com o irmão, que eram sempre as coisas legais das quais ela nunca fazia parte. Era um esforço que uma criança não deveria precisar fazer, e que, neste caso, não dava tantos resultados. Mas quando esse desconhecido chegou, algo de muito importante mudou.

Ela não precisava se esforçar e não havia rejeição. Surpreendentemente, ele parecia gostar dela. Assim, conseguindo uma atenção espontânea que ela não tinha do pai e que tanta falta sentia, passou a gostar dele também. Não, se lhe perguntassem se ela transferiu o amor paterno que carecia para ele, ela diria que não. Não era amor paterno aquilo. Que tipo de amor era não saberia explicar, mas fora uma afeição que mudou o modo como se sentia consigo mesma. Enfim, ela descobriu um espaço para si dentro de sua casa, não se sentia mais tão sem graça, pequena ou insignificante demais para não ter para si um zelo maior. Ganhara um espaço afetivo sem disputas ou tentativas vãs de conquistas. Ele poderia ter escolhido qualquer outra pessoa mais fácil, mas foi para ela que se voltou. Era seu e ninguém lhe tiraria isso.

Sua vida infantil passou a ter sentido enquanto ele lá estava. Ela sentia-se importante e especial nutrindo aquele amor estranho que só os dois compreendiam, cada um a sua maneira, talvez. Às vezes sentia-se sua boneca, com ele lhe mimando em presentes e lhe colocando do seu lado sempre que podia, pelo simples desejo de tê-la por perto; vezes sentia-se sua namorada – embora ela não pudesse compreender exatamente o que isso era de verdade com aquela idade, mas numa essência pura e inocente, era isso o que lhe parecia, e ela gostava do modo como ele a queria apenas para si – vezes sua irmã mais nova, com suas maneiras cuidadosas, preocupando-se com ela como se fosse um membro direto daquela família. De todas essas formas de se sentir perto dele, era unanime a sensação de proteção e carinho que ele lhe passava, como se, antes de qualquer adulto que pudesse lhe atrair mais a atenção, ela fosse sua prioridade. E essa exclusividade que ele lhe detinha, lhe dava os créditos para ser tudo em sua vida, tudo o que quisesse. Pois ele era tão especial e estava se tornando tão insubstituível e necessário em sua vida, que era difícil demais pensar em perdê-lo.

***

A caverna II


Tudo na vida tem um motivo e aquela sua frieza com os homens também tinha o seu. Mas se enveredavam por caminhos um tanto complexos para serem colocados numa mesa descontraída de conversas amenas como a que estava tendo com a amiga. Não duvidava que ela fosse entender, mas...estaria disposta a revirar tão fundo? A verdade é que algumas coisas só pertencem a nós, e ficam melhores dentro de nós.
Mas não escondidas de nós. E aquela conversa suscitou nela diversos motivos e reflexões...
Sim, não fora assim sempre. E se lhe perguntasse de onde vinha essa moça que ela era hoje, por mais diferentes que tenham sido os caminhos, eles davam sempre na mesma pessoa.
Mas sobre isso ela só podia refletir assim, andando sozinha pelas ruas iluminadas pelos postes de sódio e tendo apenas a garoa como companhia e um longo caminho a percorrer.
           
Não sabia qual a idade em que as pessoas começam a ter suas primeiras lembranças, mas ela sabia bem que a dela foi entre cinco e seis anos. As primeiras impressões da vida ficam marcadas para sempre, influenciam até nos dias de hoje? Não sabia ao certo, só que ele entrou em cena exatamente neste momento de clareza, de modo que, da forma mais pura e simples, não conseguia imaginar sua existência sem ele. Ele já estava lá quando seus primeiros vislumbres de vida riscaram sua consciência.
Atravessou a faixa de pedestres e caiu numa avenida mais iluminada, sob o toldo de lojas antigas. Sentiu-se confortável e aquilo a transportou para sua velha casa, perdida em algum lugar do tempo que ela não conseguia esquecer. Para o primeiro encontro.

***

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

A caverna I



Risos preenchem a sala improvisada do que agora é a morada de sua melhor amiga. Falam sobre homens e as desventuras pelas quais já passaram com eles, concordando que tinham um modo diferente de encarar a situação que não encontravam em outras amigas. Sem frescuras, frias e racionais, e porque não, até mesmo cruéis. Porém, apesar da descontração, uma amiga olhava para a outra e esse olhar já dizia tudo: por mais amigas que formos, ainda assim você nunca vai me dizer tudo não é? Ainda tem algo escondido por trás deste sorriso de Monalisa que você não me conta, algo que faz você ser desse jeito. Acho que o que você não quer é que saibamos que o seu semblante, por trás da superficialidade, esconde um grito de Munch.

Uau! Ela responde, com seu sorriso característico, que parece nunca abandonar a face serena, mesmo quando os lábios não estão flexionados, um riso que confirma e ao mesmo tempo oscila, botando, como sempre, tudo em duvida. Ela é irônica, mas não tripudia do que a amiga quer saber, a candura que reserva aos que merecem faz sua parte para afastar sutilmente um possível interrogatório. Talvez sim, talvez não. E fica tudo subentendido. A amiga a olha, já acostumada a sua arte de se esquivar, mas dessa vez não pretendia deixar para lá. O que salva o assunto de entrar em discussão foi o toque do celular, anunciando um namorado apaixonado querendo conversar. Ela sabia que se deixassem, os dois iriam horas a fio naquele papo alimentado pela distancia que os separava. Afortunada pela deixa, esgueirou-se antes que ela pudesse detê-la, dizendo que já passara da hora e precisava ir embora.

Do alto a janela, as duas se despediram, e ela acompanhou seu trajeto até a esquina onde deveria encontrar um ponto e pegar o ônibus. Mas ao dobra-la, não foi nele que parou.

Aconchegou-se mais ao casaco, pois a noite estava úmida e fria e decidiu que, depois daquela conversa, seria bom fazer uma caminhada.

***

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

O Sonho - II




Estava nos degraus da casa da amiga esperando que o ônibus que a traria do centro da cidade chegasse. Enquanto isso, dedicou um pouco mais de seu tempo a escrita do caderno do qual aquela manhã encontrara bom uso.

                Por muito tempo evitei escrever sobre...essa pessoa, sobre o que me faz e me fez sentir sua simples existência. Havia uma espécie de admiração por ele que fazia-me oculta-lo sob um véu de clandestinidade, e de proteção. Eu o protegia, protegia o que éramos ou fazíamos. Só que hoje não há mais nada que sustente essa antiga admiração. O que há é apenas desprezo e ódio, algo corrosivo e que me consome num sentimento negativo que levou tudo o que poderia sentir de bom embora. Não consigo mais ter nada de bom pela pessoa que me fez sentir como eu me senti e ainda me sinto, então, aquela preocupação em protege-lo esvaiu-se como se fossem cartas de um castelo que só agora me dava conta do quão frágil e ilusório era.
                Não tenho mais motivo nenhum para esconder dentro de mim o que possivelmente pode ser a chave para que eu me liberte deste demônio nostálgico, que me revira as lembranças criando terríveis mosaicos oníricos. Escrever deve ser a única solução. E falar talvez...

                Ela termina a frase sem conclusão ao ouvir o estrondoso som do circular que vem a toda descendo a ladeira que leva até o ponto de  ônibus, em frente a casa na qual aguarda.  A amiga salta e se cumprimentam, e enquanto destranca a porta e seguem para cima, ela pergunta como esta e porque não parecia bem quando se falaram mais cedo pelo telefone. Sua boca coça para contar sobre o sonho, mas se falasse teria de explicar muito mais coisas do qual estava disposta. Olhou para o caderno em sua mão e o escondeu na bolsa antes que também pudesse gerar perguntas. A verdade é que a escrita era uma forma muito mais fácil de expor as coisas do que a fala. Com a escrita só precisaria debater com si própria. Então, desta forma percebeu que ainda não estava pronta para conversar com mais alguém sobre aquele caso. Inventou um outro motivo banal de estresse para tirar seu sossego do dia e foram se instalar na cozinha planejando algo para comerem.

***

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

O Sonho - I


O dia arrastou-se sob a sombra do sonho. Ela tinha uma consideração forte por eles e muitas vezes era para ter mesmo. Os sonhos não lhe mostravam coisas à toa, eles nunca mostram alias. Sempre há um significado, claro ou oculto, por trás das imagens incoerentes e conflitantes. E muitas vezes, indesejáveis. Muito indesejáveis.
                Era curioso como um fato onírico podia abalar suas emoções dessa forma. Ela sentia como se tivesse acontecido de verdade e se afligia com essa impossibilidade de controle sob lembranças forjadas que ela não conseguia deter e que agora, gravadas na mente, azedavam seu dia. Pesava, como um acontecimento real.
                Decidiu que não seria uma boa ideia remoer sua aflição. A idéia que teve por algum tempo esteve fora de cogitação justamente por achar que deveria se afastar das lembranças, e não traze-las para perto dela, para que não fossem uma mina de recordações dolorosas que a prenderiam como uma bola de ferro ao mesmo lugar. Só que agora, depois de constatar que fazer o que julgava certo de nada adiantaria diante de um poder tão implacável e incontrolável quanto seu inconsciente, percebeu que talvez fosse o melhor. As vezes, para alcançar o bem precisamos combater o mal com o mal. E sabia bem qual era o seu mal.

                Tomou o caderno novo que comprara e por algum motivo nunca usara. Na verdade, não sabia nem porque havia sido comprado e mais uma vez pensou que o inconsciente deveria ter algo com aquela história. Pelo menos a parte boa de seu inconsciente. Abriu e pensou em como poderia começar a escrever aquilo, como passar para o papel uma dor?
               
                Dor, estou acostumada com a dor, com o abandono também. Parece que todas as partes da minha vida foram permeadas por um pouco deles. Aprendi a ser resistente com essa dor, mas também aprendi a ser fria e descrente.
                Estou cansada, muito cansada. É um cansaço desgostoso, que parece não me dar uma solução de como me livrar dele. Me traga, como um buraco negro, para um vazio frio e escuro. Me deixa triste. E isso é tudo o que não queria, ter meus sentimentos abalados por essa dor que preferia ter trancado naquele baú velho nas profundezas da minha mente sem possibilidade de resgate. Mas não consigo superar algo que volta mesmo sem minha permissão, que quando esta sendo esquecida, vem como um trem me atropelar e num nocaute me joga na lona, deixando meu rosto mais uma vez com sangue fresco a escorrer, com uma dor latente a me entorpecer. Quando vou ter paz? Quando me livrarei dos meus demônios? E como fazer isso, como exorcizá-los? Será que consigo aprender uma maneira disso acontecer e me ver enfim livre?

                Quando levantou os olhos piscou surpresa por já ter se esgotado o tempo livre que tinha. Fechou o caderno e voltou ao serviço, ainda com o peso a lhe incomodar, mas agora, um pouco mais aliviada por estar expondo isso em algum lugar.

***

segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

O Sonho - Introdução



Acordou ofegante no meio da madrugada. Seus olhos aflitos fitaram a escuridão do quarto, mas na verdade é como se ainda estivesse vendo as imagens do sonho. Aquele terrível sonho recorrente.
         Ficou alguns minutos quieta, afundada no travesseiro, como se temesse que qualquer movimento pudesse trazer o sonho de volta. Maldito sonho.
         Depois de passado os momentos de apreensão, o sono desvaneceu-se e sobrou apenas um gosto acre na boca e um peso singular em seu intimo. Preferia ter pesadelos com monstros míticos e perseguidores sem rosto do que aquele tipo de  sonho, aquele que parecia uma brincadeira de mau gosto de seu inconsciente, a revirar o que ela preferia deixar nos mais profundos dos vales de sua mente para tentar esquecer.
         Mas como esquecer se, ao fechar os olhos não se tem mais controle sob aquilo que se quer ou não ver? E o seu próprio corpo lhe trai, trazendo a superfície  justamente o que devia ficar bem soterrado, aquilo que muito tempo demorou sequer para chegar lá no fundo e ficar quieto como um baú velho, sem ninguém mexer.
         Ela suspira, irritada com a constatação de que, por maior que fosse seu esforço em esquecer certas coisas, em não tocar no assunto com amigos, parentes, para que nenhum deles possa cometer o deslize de trazer lembranças dolorosas a baila, é ela, e apenas ela que rompe as paredes de sua própria fortaleza e adentra para um massacre particular de suas emoções. As imagens podiam ser oníricas, mas o gosto amargo em sua boca era bem real.

         E há esse peso que a impede até mesmo de se levantar. Ainda chocada pela sua autotraição, questiona-se: Porque? Porque impor que eu veja um teatro maluco encenando possibilidades dolorosas? Porque me jogar coisas na cara quando estou silenciosa e desesperadamente tentando me esquecer delas? Será por isso, para me mostrar que por maior que seja meu esforço em tentar curar as feridas, sempre haverá um rival insuperavelmente mais forte do que eu a rir-se dizendo que de nada adiantará? Que será justamente esta sua força: esperar que eu esteja confiante em minha cura para jogar novamente um balde de acido por cima para que a ferida nunca cicatrize e fique ainda pior?
         Ela segura o travesseiro com força, com raiva.  Tenta conter o ímpeto de dizer um palavrão, gritar ou chorar. Não se dará ao luxo de nenhuma dessas reações explosivas, embora o choro seja o mais perto que ela esteja de fazer.  Só queria que aquilo parasse, e ela pudesse seguir em frente.
         Mas como? Se esse maldito diabo me puxa pelo tapete para trás. Sem dó, pois ele desconhece compaixão.

         Porque você não me deixa em paz?

***

Sad Xmas


Ninguém sai assobiando de um encontro com o próprio passado.

Martha Medeiros


         Cai uma chuva pesada, mas ela não usa suas asas para abriga-la. Quer sentir os pingos vivos e frios caírem sem piedade sobre sua pele, como se quisesse se por a prova e sentir a realidade. Não adianta. Entorpecida esta de tal forma que, nem mesmo o frescor que uma chuva de verão traz a faz emergir para a superfície.
         Passado. É o nome do cenário em que se encontra agora, naufragada novamente no ultramarino tom das profundezas. Nenhuma força faz para emergir. Seus membros, alias, parecem untado de chumbo, se locomovendo pouco. Ela não liga.
         Sob a chuva as luzes natalinas parecem esguichadas nas casas decoradas. A dela não é uma dessas, há muito deixara tais tradições para trás, assim como muitas outras coisas das quais se tornara irreversivelmente descrente. Porém, fora justamente um adorno natalino que a lançara de volta ao passado, que a fizera ir para a chuva e tentar sentir a realidade que lhe escapava cada vez mais pelos dedos, ou talvez...talvez apenas usar a tormenta para esconder suas próprias lágrimas.
         Ela pensou, quando finalmente teve algum motivo para montar sua arvore de natal, justamente as vésperas do mesmo, que aquilo não era a toa. Na verdade, surpreendeu-se ao lembrar o que exatamente  significava.
         Significava a passagem do tempo. A percepção de como o tempo passa num suspiro. E não era um pensamento poético, ela percebeu. Não, era a realidade, pois, olhando em volta ela podia ver sombras do cenário que, naquela mesma data, ela também estava, porém com um ano de diferença. Parou o que estava fazendo, surpresa em como não havia percebido o motivo  de não conseguia pensar no natal como nos outros anos, porque ele parecia bloqueado em sua mente até aquele momento. Porque fora naquela data de estranha aura festiva que tudo mudou. Exatamente nela. Olhou ao redor, pensando em como podia se lembrar de todas as horas daquele dia como se fossem uma contagem regressiva para a tragédia iminente. Pois talvez seja como dizem: você tem seus melhores momentos na iminência da morte.
         E uma parte dela se foi naquele dia. Há um ano atrás, exatamente onde estava. Olhou a arvore pronta, como costumava fazer em épocas vindouras e percebeu que ter tido uma vontade repentina de montá-la parecia uma forma de seu inconsciente de lhe mostrar o que a estava bloqueando, de tirar a venda de seus olhos para sua aversão ao natal daquele ano. Mas será que isso era bom? Ou era um castigo?
         Se estava camuflada até agora, depois da lembrança despertada, fora impossível continuar sob seu disfarce humano. Algo parecia inflar-se dentro de si, como se não coubesse naquela que usava a roupa humana, a expressão que nada revelava. Aquilo que estava dentro de si só encontraria espaço para revelar-se, para não implodi-la se ela se liberta-se da carapaça.
         E por isso estava ali sob a chuva densa, tentando encontrar nos grossos pingos de água gelada algo que neutralizasse a dor que agora sentia, o peso, o arrependimento por tudo ter terminado da forma que acabou. Só não encontrava, e achava que precisava ficar debaixo da chuva apenas para que a solidão a ajudasse a esquecer talvez aquela risada sarcástica do destino a lhe desejar um feliz natal.


terça-feira, 9 de outubro de 2012

Se eu pudesse...


Se eu pudesse pedir algo, seria para que um dia eu acordasse e descobrisse que tudo mudou. Seria uma benção ser agraciada com a inexistência de minhas lembranças, e não estar mais aqui ao reabrir os olhos de manhã. Que eu pudesse ir para um lugar só meu, onde ninguém me conhecesse e minha vida pudesse recomeçar do zero. Se eu pudesse pedir algo...

            A caneta riscou a madeira na qual apoiava a folha de papel e então ela despertou, percebendo que acabara o espaço que tinha para escrever seu pedido. Piscou os olhos, que se encheram com a luminosidade súbita do dia que ela esqueceu estar ali naqueles poucos segundos no qual sua escrita repuxada rabiscou o pedaço de papel. Suspirou, vendo os poucos que ali estavam naquela hora matutina, visitando o alto do pequeno monte religioso e olhou para o que tinha escrito, percebendo que nada do que quisesse caberia ali. Ao invés de depositar seu pedido na urna que recebia aqueles pedacinhos de agradecimentos, rogos e lastimas, amassou-o na palma de sua mão, deixando a caneta que era usada por tantas mãos, para trás.

            Bem, se eu pudesse pedir algo, é isso. Mas eu sei que ninguém pode me ajudar. Nem o Senhor.

domingo, 1 de abril de 2012

Crônicas da Fantasia

Eis um dia estou eu a navegar a esmo sem procurar nada em especial. Não lembro como, mas um link me levou a outro link e quando vi já tinha caido numa pagina da Editora Literata cuja imagem multicolorida e os desenhos simples de crias fantasticas me chama atenção. A chamada era diferente da que eu estava acostumada a ver. Desta vez não eram contos o objetivo da antologia anunciada e sim crônicas.
Crônicas....


Um dos encantos das crônicas é refletir sobre nosso cotidiano. Acontecimentos que vivemos, momentos que deixamos passar, pessoas que entram e saem de nossas vidas… E sobre o que ocorre no mundo da Fantasia? Alguém já se preocupou em pensar e escrever sobre isso?

A antologia Crônicas da Fantasia é um reflexo do mundo de nossos sonhos e pesadelos, um apanhado de fatos que nos fazem repensar sobre as atitudes e os pensamentos de criaturas nem tão diferentes de nós, e que no final, nos fazem observar a nós mesmos.

Afinal de contas, o mundo da Fantasia não é o mesmo para todos, e em cada um, acontecem muitas coisas a todo tempo e em variadas proporções. As crônicas fantásticas mostram como não estamos sozinhos no universo, e que sempre tem algo que nos surpreende." (chamada publicada em Outubro/2011 no site da editora)


Fui imediatamente fisgada pela proposta diferenciada. E tão já o tema me enfeitiçou, a idéia surgiu como as brumas esverdeadas da linda imagem que ilustra a capa, livro e cada crônica. Eu sabia bem o que iria enviar para concorrer.

Meu tema favorito sempre teve a ver com seres que carregam algum tipo de maldição, castigo ou arrependimento. Anjos e demônios permeiam os primordios da minha escrita e sempre serão personagens queridos, embora já tenha me embrenhado na exploração de outras figuras misticas. Mas dessa vez quis voltar ao tema de origem e contar o lapso de um dia díficil para um ser mitico que tem de viver no mundo dos homens. Foi aqui no blog que seu esqueleto foi gerado pela primeira vez, num fim de tarde furioso há tempos atrás. Veio de um desabafo no qual usava a metafora do anjo caido para expor meu deslocamento e frustração pelo cotidiano. As crônicas "Mestiças" são na verdade, páginas avulsas que voam quando os ventos se tornam impetuosos e é dificil conter a dor que os humanos causam uns nos outros. "Mestiça" porque existe este momento em que o humano se torna distinto desse lado quase sobrenatural de nós mesmos numa ruptura turbulenta, e ao mesmo tempo de se racha, descobre-se que não há como se separar totalmente, mostrando como somos mesclados e por vezes indefinidos. Nos tornamos 'mestiços', nem humanos nem criaturas. Até mesmo o texto se torna 'mestiço', sendo crônica, sendo desabafo, espichado, se explicando por si só.


Juro que não imaginei que fosse ser escolhido. Só de enviá-lo eu já me sentia de certa forma satisfeita, pois aquele desabafo, depois de rebuscado e narrado numa crônica de fantasia, parecia ter encontrado um proposito além da simples narração de uma angustia particular. Escrevê-lo sob o fundo musical (inspirador) de A Distance there is... dos noruegueses Theatre of Tragedy (escutem se puderem, aqui, além do post que fiz sobre a mesma, pois é simplesmente uma canção primorosa), em que a introdução, com sons de chuva e trovões me transportava para as ruas da ação da crônica e o lirismo da composição ditava a dor e melancolia dos sentimentos expressados no que eu escrevia...foi uma terapia e eu já me sentia bem de ter dado essas asas negras a este desabafo para que pudesse voar.

Mas eis que recebo a alegre (alegre mesmo) surpresa. Ele fora escolhido, dentre 130 inscritos, para estar junto de mais outros 16 autores selecionados num livro de crônicas. Uau!


Estar contente é pouco, eu me senti realizada. Consegui escrever um gênero literário que ainda não tinha explorado à sério (a crônica), consegui escrever um texto breve, o que no meu caso é para lá de complicado, pois sofro do mesmo mal de Stephen King ("elefantiase literária" rsrs), inseri neste texto o tipo de criatura fantastica que mais gosto e que esta nas minhas origens literárias e transformei um desabafo de uma tarde turbulenta na (oficial!) crônica Mestiça.  Demorou um tempo para cair a ficha de que, sim, era isso mesmo.


Um pouco sobre Crônicas da Fantasia

A antologia foi organizada pelo gaucho Cristiano Rosa (com quem divido espaço na antologia da Ed. Estronho "Quando o saci encontra os mestres do horror"), que é escritor/poeta e professor, e já publicou no livro Imagens & Letras 2 (2007), da Universidade Feevale, em O Segredo da Crisálida (2011) e Moedas Para o Barqueiro – Volume II (2011), ambos da Andross Editora e organizou a antologia Ventos Poéticos (2011), pela Editora Literata. Ele  mantém coluna sobre leitura no blog Litteratus e administra blog sobre literatura fantástica chamado Criando Testrálios. A belissima arte exposta atualmente no site da antologia e em breve nas paginas do livro, é de autoria do designer Renato Klisman.


Sinopse:

Um livro que fala sobre as criaturas mágicas, mas não por meio de simples contos, e sim com textos que levam o leitor à reflexão e ao pensamento de que mesmo não sendo humanas, elas são mais parecidas conosco do que imaginamos.

Os autores apresentam produções com os mais diversos seres: vampiro, fada, sereia, troll, ceifeiro, fauno, saci, zumbi, gnomo, feiticeira, anjo, elfo, sátiro, centauro, dragão... que levarão os leitores a mundos nem tão distantes assim do nosso, porém encantados e com cotidianos mágicos.


Lendo as crônicas da obra, podemos perceber e sentir a magia de cada criatura, se divertindo, se emocionando e se envolvendo com as narrativas, pois a visão delas sobre os mundos da imaginação refletem o nosso próprio universo.
 

Os 17 selecionados para Crônicas da Fantasia:
  • A louca que gritava na ponte, de Bruno Anselmi Matangrano
  • A primeira página, de Jefferson Reis
  • A viagem, de Nilo Gadioli
  • Cegueira, de Daniel Cavalcante
  • Desilusão, de Veridiana Ghesla
  • E se os zumbis viessem a existir?, de A. S. M. Spindler
  • Em plena sexta-feira, de Adriano Villa
  • Labirinto de concreto, de Alex Bastos
  • Memórias, de Camila Araújo
  • Mestiça, de Verônica Freitas
  • Namorado?, de Raquel Rosas
  • O desejo do fauno, de John Lennon Smith
  • O pior olhar da criatura, de Tânia Souza
  • O vendedor de balinhas, de Luiz Teodosio
  • Quando as sereias tornaram-se mundanas, de Lucas Borges
  • Satírico, de Daniel Gruber
  • Só por hoje, de Marcia Gomes

Além deles, ainda farão parte da obra textos do organizador e dos convidados:
  • Para onde vão as fadas quando crescemos, de Cristiano Rosa
  • O centauro e as flechas de luz, de Douglas Eralldo
  • Campeonato de beijar sapos, de Ana Cristina Rodrigues
O lançamento será dia 28 de abril, no evento 1ª Odisseia de Literatura Fantástica que ocorrerá em Porto Alegre. 



Curiosidades:

A idéia de uma antologia de crônicas fantasticas já me era bastante criativa, e ainda me surpreendo cada vez mais com o capricho dedicado desta obra. No site da antologia foi lançada a publicação, em todos os dias impares de março/abril, de um trecho de cada crônica selecionada e uma imagem (belissima arte, alias, e além disso, eu adoro verde!!) referente a crônica. Lindo e bem feito é pouco para definir este trabalho.

Eis a da minha crônica: 


Que chuva! Como os humanos conseguiam viver no meio daquele caos armado que é uma cidade, lá pelo fim da tarde, quando todos, ao mesmo tempo, resolviam fazer exatamente a mesma coisa? Onde estava a ordem? Como eles conseguiam se entender?"

--------------------------------------------------


O restante delas esta na pagina oficial de Crônicas da Fantasia, clique aqui para conferir os outros talentosos trabalhos (tanto dos autores quanto de arte).

O organizador também disponibilizou uma degustação da obra para quem quer dar uma conferida antes de abril. 

No mais, organizador, artistas e a Editora Literata estão de parabéns pelo trabalho. Fico ansiosa aguardando o lançamento do livro (que conincide com a semana do meu aniversário, que presente maravilhoso de se ganhar!! ^_^), e em tê-los em mãos.

Um abraço à todos!