domingo, 13 de outubro de 2013

Reflexão



“E eu estou desperto quando irrompe a aurora, 

embora meu coração padeça. Deveria estar 

brindando a amigos ausentes e não a estes 

comediantes.” 

(Elvis Costello)

domingo, 24 de março de 2013

Os sentimentos são vias de mão única




"Amar os outros é a única salvação individual que conheço. Ninguém estará perdido se der amor e, às vezes, receber amor em troca." (Clarice Lispector)

Não espere pelo amor do outro, pela atenção, ou por um carinho retribuído. Por experiência aprendi que tanto sentimentos bons como ruins não são vias de mão dupla, recíprocos, retornáveis e sim de mão única.
Se o que você sente por alguém for o suficiente para te fazer feliz, então realize-se com isso, não esperando por essa satisfação apenas pelo retorno do outro, esse retorno pode nunca vir, ou não do jeito que você gostaria. O outro pode muito bem não ter o mesmo sentimento que você tem por ele, ou com a mesma intensidade.

Ás vezes somos egoístas, achando que as pessoa devem sentir por nós o mesmo que sentimos por elas. Todos somos diferentes e encaramos a necessidade e a importância das coisas por ângulos diferentes. Eu posso ser carente e precisar da sua amizade bem mais do que ela representa para você. Ou eu posso estar me apegando a um sentimento que para mim continua vivo, mas para você já desbotou. Ás vezes, para nos sentirmos mais importantes, mais amados, necessitamos de palavras que expressem isso, verbalizadas, escritas, de alguma forma manifestadas, mas e o outro? Será que ele acha importante essa forma de expressão ou ele acha que você entende o que ele sente de maneira silenciosa e como já fazem isso há muito tempo e você nunca disse nada é porque é assim que deve ser.


"As vezes entregamos incondicionalmente nosso coração a quem menos pensa em nós."

Porque isso acontece? Porque atribuímos um status tão importante a uma pessoa e de repente, nos frustramos ao descobrir que nem somos tão importante assim para ela? Será que criamos expectativas demais em relação ao que esperamos de retorno, mas sem perceber que esse retorno está mais baseado no que NÓS faríamos do que o que o OUTRO faria?

O que fazer quando percebemos que gastamos nossas energias, nos dedicamos demais pelas pessoas erradas?
Por algum tempo eu insisti um pouco mais, achando que meu empenho daria resultados, mas a frustração e a constatação de que os sentimentos não são produtos retornáveis, e sim vias de mão única, como chamadas de longa distancia para outra galáxia, onde às vezes, com sorte, temos algum retorno, comecei a pensar se vale a pena perder tanto tempo a procura do outro. Será que ao perder esse tempo eu também não estava perdendo um pouco do meu amor próprio?




sábado, 9 de fevereiro de 2013

O demônio e o tempo


Me enviaram este texto e achei interessante. Acho que tem é uma leitura para se pensar.





O OUTRO  - Neil Gaiman


-O tempo é fluído aqui - disse o demônio.

       Ele soube que era um demônio no momento em que o viu. Assim como soube que ali era o inferno. Não havia nada mais que um ou outro pudessem ser.
       A sala era comprida e na outra extremidade o demônio o esperava ao lado de um braseiro fumegante. Uma grande variedade de objetos pendia das paredes cinzentas, cor de pedra, do tipo que não parecia sensato ou reconfortante inspecionar muito perto. O pé-direito era baixo e o chão, estranhamente diáfano.

       -Chegue mais perto - ordenou o demônio, e ele se aproximou.

       O demônio era esquelético e estava nu. Tinha cicatrizes profundas, que pareciam frutos de um açoite ocorrido num passado distante. Não tinha orelhas nem sexo. Os lábios eram finos e ascéticos, e os olhos condiziam com os de um demônio: tinha ido longe demais e visto mais do que deveriam. Sob aquele olhar, ele se sentia menos importante do que uma mosca.

       -O que acontece agora? - ele perguntou.

       -Agora - disse o demônio com uma voz que não demonstrava sofrimento nem deleite, somente uma horripilante e neutra resignação - você será torturado.

       -Por quanto tempo?

       O demônio balançou a cabeça e não respondeu. Ele percorreu lentamente a parede, examinando uma a um os instrumentos ali pendurados. Na outra extremidade, perto da porta fechada, estava um açoite feito de arame farpado. O demônio o apanhou com uma de suas mãos de três dedos e retornou, carregando-o com reverência até o outro lado da sala. Pôs as pontas de arame sobre o braseiro e observou enquanto se aqueciam.

       -Isso é desumano.

       -Sim.

       As pontas do açoite ganharam um brilho alaranjado.
       Quando ergueu o braço para dar o primeiro golpe, o demônio disse:

       -No futuro você sentirá saudades deste momento.

       -Você é um mentiroso.

       -Não - respondeu o demônio. - A próxima parte é ainda pior - explicou, pouco antes de descer o açoite.

       As pontas do açoite atingiram as costas do homem com um estalo e um chiado, rasgando-lhe as roupas claras. Elas queimavam, cortavam e estraçalhavam tudo o que tocavam. E, não pela última vez naquele lugar, ele gritou;
       Duzentos e onze instrumentos repousavam nas paredes da sala e, com o tempo, ele experimentou cada um deles.
       Por fim, a filha do Lazareno, que ele acabou conhecendo intimamente, foi limpa e recolocada na parede na duocentésima décima primeira posição. Nesse momento, por entre os lábios rachados, ele soluçou:

       -E agora?

       -Agora começa a dor de verdade - informou o demônio.

       E começou mesmo.
       Cada coisa que ele fizera e que teria sido melhor não ter feito. Cada mentira que contara - a si mesmo ou aos outros. Cada pequena mágoa, e todas as grandes mágoas. Cada uma dessas coisas foi arrancada dele, detalhe por detalhe, centímetro por centímetro. O demônio descascava a crosta do esquecimento, tirava tudo até sobrar somente a verdade, e isso doía mais que qualquer outra coisa.

       -Conte o que você pensou quando a viu indo embora - exigiu o demônio.

       -Pensei que meu coração ia partir.

       - Não, não pensou - contestou o demônio, sem ódio. Dirigiu seu olhar sem expressão para o o homem, que se viu forçado a desviar os olhos.

       -Pensei: agora ela nunca saberá que eu dormia com a irmã dela.

       O demônio desconstruiu a vida do homem, momento por momento, um instante medonho após o outro. Isso levou cem anos ou talvez mil - eles tinham todo o tempo do universo naquela sala cinzenta. Lá pelo fim, ele percebeu que o demônio tinha razão. Aquilo era pior que a tortura física.

       Mas acabou.

       Só que, quando acabou, começou de novo. E com uma consciência de si mesmo que ele  não tinha da primeira vez, o que de certa forma tornava tudo ainda pior.
       Agora, enquanto falava, ele se odiava. Não havia mentiras nem evasivas, nem espaço para nada que não fosse dor e esquecimento.
       Ele falava. Não chorava mais. E, quando terminou, mil anos depois, rezou para que o demônio fosse até a parede e pegasse a faca de escalpelar, ou o sufocador, ou a morsa.

       -De novo - ordenou o demônio quando ele se calou, como se nada tivesse sido dito até então.

       Era como descascar uma cebola. Dessa vez, ao repassar sua vida, ele aprendeu as consequências. Percebeu os resultados das coisas que fizera; notou que estava cego quando tomou certas atitudes; tomou conhecimento das maneiras como infligira mágoas ao mundo; dos danos que causava a pessoas que jamais conhecera, encontrara ou vira. Foi a lição mais difícil até aquele momento.

       -De novo - ordenou o demônio, mil anos depois.

       Ele agachou no chão, ao lado do braseiro, balançando o corpo de leve, com os olhos fechados, e contou a história de sua vida, revivendo-a enquanto contava, do nascimento até a morte, sem mudar nada, sem omitir nada, enfrentando tudo. Abriu seu coração.
       Quando acabou, ficou ali sentado, de olhos fechados, esperando que a voz dissesse: "De novo". Porém, nada foi dito. Ele abriu os olhos.
       Lentamente, ficou de pé. Estava sozinho. Na outra ponta da sala havia uma porta, que enquanto ele olhava, se abriu.
       Um homem entrou. Havia terror em seu rosto, e também arrogância, e orgulho. O homem, que usava roupas caras, deu alguns passos hesitantes pela sala e parou.
       Ao ver o homem, ele entendeu:

       -O tempo é fluido aqui.
      
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domingo, 27 de janeiro de 2013

A caverna IV




Os ônibus passavam sem que tivesse vontade de parar em nenhum dos pontos para tomar um e sair da chuva que engrossara e tornara-se torrencial. A verdade é que a tormenta também escondia suas lágrimas, pois pensar naquilo lhe revolvia o intimo e lhe deixava sensível. Livre, era assim que se sentia ao percorrer a longa avenida sem se preocupar, pois sua mente estava em outro lugar, com outras preocupações. Preocupações perdidas em outra existência...
O que aquele homem realmente sentia por ela? Apesar de, muito tempo depois, tentar transformar esse sentimento numa mentira, ela, de verdade, não conseguia imaginar que fosse isso. Podia ser inocente, mas até mesmo olhando a situação de longe, muito tempo depois, não sentiu que foi de todo ingênua em acreditar que o que ele sentia por ela não fosse verdadeiro. Era. Só não conseguia definir o grau disto, ou o porquê de certas coisas. E a complexidade a afastou de definir uma explicação ou julgamento, como outros queriam. Dentro dela, sempre houve esse vácuo do motivo, da razão daquele amor ter se distorcido e se transformado em algo que foi taxado como mau, pervertido, relegado ao silencio constrangido da família.
Não conseguia pensar naquilo de uma maneira linear como até aquele momento. Ao chegar nesta parte da história, ela se picotava em recortes que iam e vinham e respirou fundo, aspirando agua fria que caia por seu nariz para tentar colocar as coisas no lugar. Sua visão se turvava da chuva ou de lagrimas?
Ela sabia de uma coisa que talvez ninguém mais soubesse ou se preocupasse em entender: não foi por pura maldade que, com o tempo, ele transformou sua afeição à ela em algo que ela não compreendia com sua pouca idade. Se ela soubesse da celebre e polemica personagem de Nobokov naquela época, pensaria se ele não a transformou na sua própria Lolita? Talvez...mas aquela da historia do russo não nutria nada de especial por seu Humbert e vivia com seu sequestrador pelo fato de ela mesma sentir-se perdida e não ter para onde ir. Se não ficasse com ele, se não se aproveitasse da atenção que ele lhe atribuía, com quem mais estaria? Mesmo que para isso, tivesse que viver experiências que nada tinham a ver com sua condição precoce de pré-adolescente.
A situação era parecida? Será...? Ao contrário de Lolita, ela nutria sim um forte amor por aquele homem que ali estava lhe dando toda a atenção que sempre quisera ter Mas por medo de perdê-lo, submeteu-se as suas vontades estranhas. Tinha um fundo da ficção, mas continuava não o associando ao pervertido Humbert-Humbert. Só não sabia se fazia isso por não saber ao certo a versão dele nesta história ou se porque sentia que seus sentimentos se diferenciavam do estuprador pedófilo numa escala que só ela conseguia entender.
Mas o fato era: ela descobriu o sexo muito antes do que qualquer pessoa que conhecia poderia conceber. Não era à toa que sentia-se tão predisposta a volúpia nos dias de hoje: as raízes eram essas. Precoces e conturbadas, estranhas e até mesmo imorais.
O que ela pensava sobre isso? Ela preferiu andar um pouco, silenciando até seus pensamentos, deixando apenas o olhar vagar pelas poças d’agua refletindo as luzes dos carros e dos postes. Parou finalmente num dos pontos, lembrando que costumava tomar o ônibus ali de volta para a rodoviária da cidade quando saia do estagio que fazia naquele bairro. Ótimo, já deixara outro pensamento entrar em sua mente, dando-lhe um descanso daquela historia perturbadora.
Só debaixo da proteção do ponto começou a sentir frio e tremer. Olhando a chuva que continuava a cair e não dava trégua, não teve coragem para tornar a encara-la e talvez fosse ai o fim daquele passeio reflexivo.  Estava na hora de voltar para casa e começou a fitar o horizonte desejando que viesse logo uma condução que lhe tirasse do frio da noite.
Então um carro parou no meio fio e demorou alguns segundos para entender que era com ela. Sentiu um calafrio e suas defesas naturais sempre em alerta contra estranhos – não, contra homens, mesmo que quem saísse daquele carro não fosse um, sua associação ao perigo era imediata – fizeram dar um passo para trás e ficar de sobreaviso. Quando o vidro desceu, experimentou um segundo de engulho, porque se fosse algum homem querendo alguma besteira...
— Menina, você esta encharcada! O que ta fazendo aqui?
Um suspiro de alivio imediatamente percorreu seu corpo tremulo de frio e apreensão. Eram apenas colegas do trabalho que por lá passavam. Atribuíram sua palidez ao frio e pediram que entrasse, coisa que ela se recusou a principio, argumentando que molharia todo o estofamento, mas não teve opção e logo estava no calor característico de um carro fechado na chuva. Agradeceu mentalmente pelo conforto que tanto precisava....
Houve alguns minutos de conversa trivial e ela não deu muitas explicações do motivo de estar andando sozinha na chuva além daquelas que serviriam para fazê-los se desinteressarem de continuarem questionando. Tudo em você é esquivo, lembrou da amiga que deixara em casa lhe dizendo e sorriu consigo mesma.
Depois de um tempo caiu em seu silêncio habitual olhando aquele casal que conduzia o veiculo, no modo como brincavam, se entendiam e pareciam normais: teriam tido experiências que lhe distorceram a personalidade quando pequenos? Não parecia...e quando percebeu, a fresta daquela porta para seu passado novamente se abriu e ela, olhando a paisagem passar velozmente pelo vidro embaçado, se perdeu novamente numa época ha muito longínqua.

***

Se você esta começando a achar isso interessante, comente o que pensou.

sábado, 19 de janeiro de 2013

Hoje



É meio engraçado como algumas coisas acontecem. Às vezes algumas pessoas veem até você com o intuito de te derrubar, te rebaixar, te humilhar. Usa de uma saraivada de palavras hediondas esperando te reduzir a nada. O suficiente para realmente estragar o dia de qualquer um, para tirar do sério, para acabar com o humor, a paciência, a inspiração. Mas...dependendo de como você já está, do modo como de certa forma você ja esperava por algo, mesmo que não houvesse definição para este algo...não é bem este o resultado da escrota façanha. Na verdade o efeito é meio reverso, e é possível sentir quase uma satisfação com isso. Não uma satisfação boa, mas um alivio...porque acabou. Enfim acabou. É possível agora estabelecer uma opinião e finalizar dúvidas. É possível, de uma vez por todas se sentir livre para seguir em frente. Dor? Não, sem permissão para sentir isso por alguém que mereceu perder minha admiração e respeito. Dor talvez por mim, por, às vezes, ser tão empática que me deixo levar pela falsa bondade dos outros.



sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Um dia a gente se vê

Se tem uma musica da Legião que amo é Ainda é Cedo, letra, composição, melodias perfeitas. Linda e ácida.
Que pareça clichê, mas sinto ser a música da minha vida. 

Neste show Renato faz uma introdução com musica de Madona "Like a prayer":


"A vida é um mistério

Todos devem permanecer sozinhos
Ouço você chamar meu nome
E me sinto em casa".


E finalização com "Stairway to Heaven" do Led Zeppelin:

"Há uma moça certa de que tudo que brilha é ouro
E ela está comprando a escadaria para o paraíso
Ao chegar lá ela sabe, que se as lojas estiverem fechadas,
Com uma palavra e ela consegue o que veio buscar

Oh, isso me faz pensar, oh, isso me faz pensar...."


"Era essas as músicas que a gente ouvia, e toda vez que ouço essas musicas eu me lembro daquela menina, sabia? E teve uma época que não podia ouvir Janes Joplin que fazia mal." - RR



_ _ _


Ainda é cedo


Uma menina me ensinou
Quase tudo que eu sei
Era quase escravidão
Mas ela me tratava como um rei


Ela fazia muitos planos

Eu só queria estar ali
Sempre ao lado dela
Eu não tinha aonde ir

Mas, egoísta que eu sou,
Me esqueci de ajudar
A ela como ela me ajudou
E não quis me separar

Ela também estava perdida
E por isso se agarrava a mim também
E eu me agarrava a ela
Porque eu não tinha mais ninguém

E eu dizia: - Ainda é cedo
cedo, cedo, cedo, cedo 
E eu dizia ainda é cedo..

Sei que ela terminou
O que eu não comecei
E o que ela descobriu
Eu aprendi também, eu sei

Ela falou: - Você tem medo
Aí eu disse: - Quem tem medo é você
Falamos o que não devia
Nunca ser dito por ninguém

Ela me disse:
- Eu não sei mais o que eu
sinto por você. Vamos dar
um tempo, um dia a gente se vê

E eu dizia: - Ainda é cedo
cedo, cedo, cedo, cedo 
E eu dizia ainda é cedo..

_ _ _

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

A caverna III


Ninguém consulta as crianças quando alguma coisa de diferente vai acontecer na casa. Os adultos, aqueles gigantes imponentes sabem de tudo e não é necessário delongas ou explicações com aqueles que ficam lá embaixo observando os seus movimentos e falas complexas. Mas só o que ela conseguia imaginar, ao vê-lo parado na sala conversando com os pais quando chegou em casa era: quem era aquele estranho e o que ele estava fazendo ali? Por alguns minutos sentiu-se incomodada com a presença nova e o modo como ninguém lhe dizia o que estava acontecendo. Só mais tarde soube que ele viera para ficar por algum tempo. Ela não se lembra de muito mais além disso, mas, como uma fotografia, se fixou em sua mente esse primeiro impacto da estranheza e do leve medo do desconhecido, ao vê-lo no espaço que ela considerava familiar e seguro. Porém, ela veria que logo ele se incorporaria nesta sensação de intimidade doméstica e faria parte dela mais do que a própria família.

Ela lembra porque isso aconteceu. Seu pai sempre venerara o irmão, único que tinha. Naquele tempo ela achava que deveria se esforçar para ter a atenção de ambos. Uma vez tendo a atenção do irmão, ela teria do pai, ou uma vez com o pai, ela poderia participar do que ele fazia com o irmão, que eram sempre as coisas legais das quais ela nunca fazia parte. Era um esforço que uma criança não deveria precisar fazer, e que, neste caso, não dava tantos resultados. Mas quando esse desconhecido chegou, algo de muito importante mudou.

Ela não precisava se esforçar e não havia rejeição. Surpreendentemente, ele parecia gostar dela. Assim, conseguindo uma atenção espontânea que ela não tinha do pai e que tanta falta sentia, passou a gostar dele também. Não, se lhe perguntassem se ela transferiu o amor paterno que carecia para ele, ela diria que não. Não era amor paterno aquilo. Que tipo de amor era não saberia explicar, mas fora uma afeição que mudou o modo como se sentia consigo mesma. Enfim, ela descobriu um espaço para si dentro de sua casa, não se sentia mais tão sem graça, pequena ou insignificante demais para não ter para si um zelo maior. Ganhara um espaço afetivo sem disputas ou tentativas vãs de conquistas. Ele poderia ter escolhido qualquer outra pessoa mais fácil, mas foi para ela que se voltou. Era seu e ninguém lhe tiraria isso.

Sua vida infantil passou a ter sentido enquanto ele lá estava. Ela sentia-se importante e especial nutrindo aquele amor estranho que só os dois compreendiam, cada um a sua maneira, talvez. Às vezes sentia-se sua boneca, com ele lhe mimando em presentes e lhe colocando do seu lado sempre que podia, pelo simples desejo de tê-la por perto; vezes sentia-se sua namorada – embora ela não pudesse compreender exatamente o que isso era de verdade com aquela idade, mas numa essência pura e inocente, era isso o que lhe parecia, e ela gostava do modo como ele a queria apenas para si – vezes sua irmã mais nova, com suas maneiras cuidadosas, preocupando-se com ela como se fosse um membro direto daquela família. De todas essas formas de se sentir perto dele, era unanime a sensação de proteção e carinho que ele lhe passava, como se, antes de qualquer adulto que pudesse lhe atrair mais a atenção, ela fosse sua prioridade. E essa exclusividade que ele lhe detinha, lhe dava os créditos para ser tudo em sua vida, tudo o que quisesse. Pois ele era tão especial e estava se tornando tão insubstituível e necessário em sua vida, que era difícil demais pensar em perdê-lo.

***

A caverna II


Tudo na vida tem um motivo e aquela sua frieza com os homens também tinha o seu. Mas se enveredavam por caminhos um tanto complexos para serem colocados numa mesa descontraída de conversas amenas como a que estava tendo com a amiga. Não duvidava que ela fosse entender, mas...estaria disposta a revirar tão fundo? A verdade é que algumas coisas só pertencem a nós, e ficam melhores dentro de nós.
Mas não escondidas de nós. E aquela conversa suscitou nela diversos motivos e reflexões...
Sim, não fora assim sempre. E se lhe perguntasse de onde vinha essa moça que ela era hoje, por mais diferentes que tenham sido os caminhos, eles davam sempre na mesma pessoa.
Mas sobre isso ela só podia refletir assim, andando sozinha pelas ruas iluminadas pelos postes de sódio e tendo apenas a garoa como companhia e um longo caminho a percorrer.
           
Não sabia qual a idade em que as pessoas começam a ter suas primeiras lembranças, mas ela sabia bem que a dela foi entre cinco e seis anos. As primeiras impressões da vida ficam marcadas para sempre, influenciam até nos dias de hoje? Não sabia ao certo, só que ele entrou em cena exatamente neste momento de clareza, de modo que, da forma mais pura e simples, não conseguia imaginar sua existência sem ele. Ele já estava lá quando seus primeiros vislumbres de vida riscaram sua consciência.
Atravessou a faixa de pedestres e caiu numa avenida mais iluminada, sob o toldo de lojas antigas. Sentiu-se confortável e aquilo a transportou para sua velha casa, perdida em algum lugar do tempo que ela não conseguia esquecer. Para o primeiro encontro.

***

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

A caverna I



Risos preenchem a sala improvisada do que agora é a morada de sua melhor amiga. Falam sobre homens e as desventuras pelas quais já passaram com eles, concordando que tinham um modo diferente de encarar a situação que não encontravam em outras amigas. Sem frescuras, frias e racionais, e porque não, até mesmo cruéis. Porém, apesar da descontração, uma amiga olhava para a outra e esse olhar já dizia tudo: por mais amigas que formos, ainda assim você nunca vai me dizer tudo não é? Ainda tem algo escondido por trás deste sorriso de Monalisa que você não me conta, algo que faz você ser desse jeito. Acho que o que você não quer é que saibamos que o seu semblante, por trás da superficialidade, esconde um grito de Munch.

Uau! Ela responde, com seu sorriso característico, que parece nunca abandonar a face serena, mesmo quando os lábios não estão flexionados, um riso que confirma e ao mesmo tempo oscila, botando, como sempre, tudo em duvida. Ela é irônica, mas não tripudia do que a amiga quer saber, a candura que reserva aos que merecem faz sua parte para afastar sutilmente um possível interrogatório. Talvez sim, talvez não. E fica tudo subentendido. A amiga a olha, já acostumada a sua arte de se esquivar, mas dessa vez não pretendia deixar para lá. O que salva o assunto de entrar em discussão foi o toque do celular, anunciando um namorado apaixonado querendo conversar. Ela sabia que se deixassem, os dois iriam horas a fio naquele papo alimentado pela distancia que os separava. Afortunada pela deixa, esgueirou-se antes que ela pudesse detê-la, dizendo que já passara da hora e precisava ir embora.

Do alto a janela, as duas se despediram, e ela acompanhou seu trajeto até a esquina onde deveria encontrar um ponto e pegar o ônibus. Mas ao dobra-la, não foi nele que parou.

Aconchegou-se mais ao casaco, pois a noite estava úmida e fria e decidiu que, depois daquela conversa, seria bom fazer uma caminhada.

***

Nossas lembranças...



“Por mais longa que seja nossa existência temos nossas lembranças – pontos no tempo que o próprio tempo não consegue apagar.
O sofrimento pode deturpar meus vislumbres do passado, mas mesmo diante do sofrimento algumas lembranças se recusam a perder seja o que for de sua beleza ou de seu esplendor.
Pelo contrário, elas permanecem sólidas como pedras preciosas.”

(“Sangue e Ouro” – Anne Rice)


Para entender o restante do que virá....



quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

O Sonho - II




Estava nos degraus da casa da amiga esperando que o ônibus que a traria do centro da cidade chegasse. Enquanto isso, dedicou um pouco mais de seu tempo a escrita do caderno do qual aquela manhã encontrara bom uso.

                Por muito tempo evitei escrever sobre...essa pessoa, sobre o que me faz e me fez sentir sua simples existência. Havia uma espécie de admiração por ele que fazia-me oculta-lo sob um véu de clandestinidade, e de proteção. Eu o protegia, protegia o que éramos ou fazíamos. Só que hoje não há mais nada que sustente essa antiga admiração. O que há é apenas desprezo e ódio, algo corrosivo e que me consome num sentimento negativo que levou tudo o que poderia sentir de bom embora. Não consigo mais ter nada de bom pela pessoa que me fez sentir como eu me senti e ainda me sinto, então, aquela preocupação em protege-lo esvaiu-se como se fossem cartas de um castelo que só agora me dava conta do quão frágil e ilusório era.
                Não tenho mais motivo nenhum para esconder dentro de mim o que possivelmente pode ser a chave para que eu me liberte deste demônio nostálgico, que me revira as lembranças criando terríveis mosaicos oníricos. Escrever deve ser a única solução. E falar talvez...

                Ela termina a frase sem conclusão ao ouvir o estrondoso som do circular que vem a toda descendo a ladeira que leva até o ponto de  ônibus, em frente a casa na qual aguarda.  A amiga salta e se cumprimentam, e enquanto destranca a porta e seguem para cima, ela pergunta como esta e porque não parecia bem quando se falaram mais cedo pelo telefone. Sua boca coça para contar sobre o sonho, mas se falasse teria de explicar muito mais coisas do qual estava disposta. Olhou para o caderno em sua mão e o escondeu na bolsa antes que também pudesse gerar perguntas. A verdade é que a escrita era uma forma muito mais fácil de expor as coisas do que a fala. Com a escrita só precisaria debater com si própria. Então, desta forma percebeu que ainda não estava pronta para conversar com mais alguém sobre aquele caso. Inventou um outro motivo banal de estresse para tirar seu sossego do dia e foram se instalar na cozinha planejando algo para comerem.

***