domingo, 27 de janeiro de 2013

A caverna IV




Os ônibus passavam sem que tivesse vontade de parar em nenhum dos pontos para tomar um e sair da chuva que engrossara e tornara-se torrencial. A verdade é que a tormenta também escondia suas lágrimas, pois pensar naquilo lhe revolvia o intimo e lhe deixava sensível. Livre, era assim que se sentia ao percorrer a longa avenida sem se preocupar, pois sua mente estava em outro lugar, com outras preocupações. Preocupações perdidas em outra existência...
O que aquele homem realmente sentia por ela? Apesar de, muito tempo depois, tentar transformar esse sentimento numa mentira, ela, de verdade, não conseguia imaginar que fosse isso. Podia ser inocente, mas até mesmo olhando a situação de longe, muito tempo depois, não sentiu que foi de todo ingênua em acreditar que o que ele sentia por ela não fosse verdadeiro. Era. Só não conseguia definir o grau disto, ou o porquê de certas coisas. E a complexidade a afastou de definir uma explicação ou julgamento, como outros queriam. Dentro dela, sempre houve esse vácuo do motivo, da razão daquele amor ter se distorcido e se transformado em algo que foi taxado como mau, pervertido, relegado ao silencio constrangido da família.
Não conseguia pensar naquilo de uma maneira linear como até aquele momento. Ao chegar nesta parte da história, ela se picotava em recortes que iam e vinham e respirou fundo, aspirando agua fria que caia por seu nariz para tentar colocar as coisas no lugar. Sua visão se turvava da chuva ou de lagrimas?
Ela sabia de uma coisa que talvez ninguém mais soubesse ou se preocupasse em entender: não foi por pura maldade que, com o tempo, ele transformou sua afeição à ela em algo que ela não compreendia com sua pouca idade. Se ela soubesse da celebre e polemica personagem de Nobokov naquela época, pensaria se ele não a transformou na sua própria Lolita? Talvez...mas aquela da historia do russo não nutria nada de especial por seu Humbert e vivia com seu sequestrador pelo fato de ela mesma sentir-se perdida e não ter para onde ir. Se não ficasse com ele, se não se aproveitasse da atenção que ele lhe atribuía, com quem mais estaria? Mesmo que para isso, tivesse que viver experiências que nada tinham a ver com sua condição precoce de pré-adolescente.
A situação era parecida? Será...? Ao contrário de Lolita, ela nutria sim um forte amor por aquele homem que ali estava lhe dando toda a atenção que sempre quisera ter Mas por medo de perdê-lo, submeteu-se as suas vontades estranhas. Tinha um fundo da ficção, mas continuava não o associando ao pervertido Humbert-Humbert. Só não sabia se fazia isso por não saber ao certo a versão dele nesta história ou se porque sentia que seus sentimentos se diferenciavam do estuprador pedófilo numa escala que só ela conseguia entender.
Mas o fato era: ela descobriu o sexo muito antes do que qualquer pessoa que conhecia poderia conceber. Não era à toa que sentia-se tão predisposta a volúpia nos dias de hoje: as raízes eram essas. Precoces e conturbadas, estranhas e até mesmo imorais.
O que ela pensava sobre isso? Ela preferiu andar um pouco, silenciando até seus pensamentos, deixando apenas o olhar vagar pelas poças d’agua refletindo as luzes dos carros e dos postes. Parou finalmente num dos pontos, lembrando que costumava tomar o ônibus ali de volta para a rodoviária da cidade quando saia do estagio que fazia naquele bairro. Ótimo, já deixara outro pensamento entrar em sua mente, dando-lhe um descanso daquela historia perturbadora.
Só debaixo da proteção do ponto começou a sentir frio e tremer. Olhando a chuva que continuava a cair e não dava trégua, não teve coragem para tornar a encara-la e talvez fosse ai o fim daquele passeio reflexivo.  Estava na hora de voltar para casa e começou a fitar o horizonte desejando que viesse logo uma condução que lhe tirasse do frio da noite.
Então um carro parou no meio fio e demorou alguns segundos para entender que era com ela. Sentiu um calafrio e suas defesas naturais sempre em alerta contra estranhos – não, contra homens, mesmo que quem saísse daquele carro não fosse um, sua associação ao perigo era imediata – fizeram dar um passo para trás e ficar de sobreaviso. Quando o vidro desceu, experimentou um segundo de engulho, porque se fosse algum homem querendo alguma besteira...
— Menina, você esta encharcada! O que ta fazendo aqui?
Um suspiro de alivio imediatamente percorreu seu corpo tremulo de frio e apreensão. Eram apenas colegas do trabalho que por lá passavam. Atribuíram sua palidez ao frio e pediram que entrasse, coisa que ela se recusou a principio, argumentando que molharia todo o estofamento, mas não teve opção e logo estava no calor característico de um carro fechado na chuva. Agradeceu mentalmente pelo conforto que tanto precisava....
Houve alguns minutos de conversa trivial e ela não deu muitas explicações do motivo de estar andando sozinha na chuva além daquelas que serviriam para fazê-los se desinteressarem de continuarem questionando. Tudo em você é esquivo, lembrou da amiga que deixara em casa lhe dizendo e sorriu consigo mesma.
Depois de um tempo caiu em seu silêncio habitual olhando aquele casal que conduzia o veiculo, no modo como brincavam, se entendiam e pareciam normais: teriam tido experiências que lhe distorceram a personalidade quando pequenos? Não parecia...e quando percebeu, a fresta daquela porta para seu passado novamente se abriu e ela, olhando a paisagem passar velozmente pelo vidro embaçado, se perdeu novamente numa época ha muito longínqua.

***

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1 comentários:

Yane Faria disse...

Sem palavras para descrever o que senti ao ler esse texto. Esses sentimentos foram descritos tão bem que fazem doer em quem ler, mas não o tanto que dói em quem os sentiu de verdade.
Belo texto, de uma sensibilidade tocante, escreves muito bem moça.