O dia
arrastou-se sob a sombra do sonho. Ela tinha uma consideração forte por eles e
muitas vezes era para ter mesmo. Os sonhos não lhe mostravam coisas à toa, eles
nunca mostram alias. Sempre há um significado, claro ou oculto, por trás das
imagens incoerentes e conflitantes. E muitas vezes, indesejáveis. Muito
indesejáveis.
Era curioso como um fato onírico
podia abalar suas emoções dessa forma. Ela sentia como se tivesse acontecido de
verdade e se afligia com essa impossibilidade de controle sob lembranças
forjadas que ela não conseguia deter e que agora, gravadas na mente, azedavam
seu dia. Pesava, como um acontecimento real.
Decidiu que não seria uma boa
ideia remoer sua aflição. A idéia que teve por algum tempo esteve fora de
cogitação justamente por achar que deveria se afastar das lembranças, e não
traze-las para perto dela, para que não fossem uma mina de recordações
dolorosas que a prenderiam como uma bola de ferro ao mesmo lugar. Só que agora,
depois de constatar que fazer o que julgava certo de nada adiantaria diante de
um poder tão implacável e incontrolável quanto seu inconsciente, percebeu que
talvez fosse o melhor. As vezes, para alcançar o bem precisamos combater o mal
com o mal. E sabia bem qual era o seu mal.
Tomou o caderno novo que
comprara e por algum motivo nunca usara. Na verdade, não sabia nem porque havia
sido comprado e mais uma vez pensou que o inconsciente deveria ter algo com
aquela história. Pelo menos a parte boa de seu inconsciente. Abriu e pensou em
como poderia começar a escrever aquilo, como passar para o papel uma dor?
Dor,
estou acostumada com a dor, com o abandono também. Parece que todas as partes
da minha vida foram permeadas por um pouco deles. Aprendi a ser resistente com
essa dor, mas também aprendi a ser fria e descrente.
Estou
cansada, muito cansada. É um cansaço desgostoso, que parece não me dar uma
solução de como me livrar dele. Me traga, como um buraco negro, para um vazio
frio e escuro. Me deixa triste. E isso é tudo o que não queria, ter meus
sentimentos abalados por essa dor que preferia ter trancado naquele baú velho
nas profundezas da minha mente sem possibilidade de resgate. Mas não consigo
superar algo que volta mesmo sem minha permissão, que quando esta sendo
esquecida, vem como um trem me atropelar e num nocaute me joga na lona,
deixando meu rosto mais uma vez com sangue fresco a escorrer, com uma dor
latente a me entorpecer. Quando vou ter paz? Quando me livrarei dos meus
demônios? E como fazer isso, como exorcizá-los? Será que consigo aprender uma
maneira disso acontecer e me ver enfim livre?
Quando levantou os olhos piscou surpresa por já ter se
esgotado o tempo livre que tinha. Fechou o caderno e voltou ao serviço, ainda
com o peso a lhe incomodar, mas agora, um pouco mais aliviada por estar expondo
isso em algum lugar.
***